sábado, 31 de março de 2007

Lar das Almas


O que é este lugar estranho, de terror e medo? O que é este mundo de pesadelos onde o solo muda e os céus se partem, como se fosse o dia do juízo? O que é esta terra monstruosa? E por que ela me faz sentir tão... em casa?
Todas as criaturas anseiam por um lar. Os animais peregrinam pela terra em busca de espaço suficiente para encontrar comida, abrigo, parceiros. Os humanos constroem casas, escritórios e templos cada vez maiores, devastam mais florestas, ocupam mais terra, tudo em seu esforço desesperado em fazer um lar. Os espíritos acomodam-se nas lacunas das almas de seus benfeitores. Como santos de pau oco dentro de santos de pau oco, cada um tem uma casa e serve como casa para outro.

Mas onde é a minha? Onde eu devo dormir a noite? As cidades que devoram a terra como minhocas gordas não são o meu lar. Muitos de meus amigos se aventuram a essas cidades. Alguns deles vivem lá. Mas as cidades não são o meu lar. As florestas são as terras de nossos irmãos que andam sobre quatro patas, que são alados e que respiram água. Eles compartilham suas florestas comigo, mas ainda assim elas não são o meu lar. O reino astral é o lar dos espíritos que nele vivem de bom grado. Mas não posso viver ali eternamente. Se o reino astral é o meu lar, é um lar horrível, do qual é melhor estar longe.

Por que não tenho lar? E por que sou o único?

Todos os tipos de criaturas que escutam umas poucas notas da canção de Gaia têm um lar, assim como aquelas criaturas desprezíveis que tapam os ouvidos para a mais melodiosa das músicas. Quão irônico é que eu – o mais amoroso filho de Gaia – me sinta tão deslocado em seu colo.

Onde é a minha casa? A que lugar eu pertenço? Na terra da alienação, isolamento e dor infligida pelo mal, busco ardorosamente por um lugar que eu possa chamar de meu. Um lugar ao qual eu não seja apenas bem vindo, mas do qual eu seja um ingrediente essencial. Para mim, este desejo por um lar é um sentimento estranho, na melhor das hipóteses, agridoce, já tendo enviado até o mais forte guerreiro aos abismos do Inferno.

Por quê?

Escalei até o topo do Lugar mais Sagrado. Gritei e rasguei minha carne, e uivei para minha Mãe em toda parte: “Por que, abençoada Mãe, por quê? Eu, o mais fiel entre todos os teus filhos, rogo a ti! Diga-me o motivo!”.

E a resposta veio.

Uma voz, tranqüila como a floresta na escuridão, fez-se ouvir. Disse ela: “Todas as minhas bênçãos para ti, meu filho. Tu perguntaste, eu responderei. Escutai-me e saiba tudo. É por causa de tua fidelidade para comigo que sentes na alma a angústia da falta de um lar. Para não mais sentir essa angústia, basta renunciar a mim. A dor ainda estará em teu íntimo, mas todos os efeitos dela te abandonarão”.

“Mas enquanto tu me amares, conhecerás as alegrias e as dores que são minhas. A alienação que tu sentes é a minha alienação –uma parte profunda de meu ser é arrendada por outro. O isolamento que tu sentes é o meu isolamento – paredes construídas dentro de mim separam partes de meu corpo. A dor que tu sentes é a minha dor, acumulada durante as eras”.

“Renuncies a mim, e eu não te amarei menos do que te amo agora. Podes unir-te àqueles que me despojam, e ainda terás todo o meu amor. Tudo o que ofereço a ti em troca de tua fidelidade é o reflexo de minha própria dor e tristeza”.

Com essas palavras, desapareceu. Eu ainda carregava minha dor. Mas naquele dia uma nova canção brotou em meu coração. Uma canção de devoção. Que todos os vassalos do inferno invistam contra mim. Eu me reerguerei! Que todos os animais se encolham diante de mim! Que todos os humanos fujam de mim! Que todos os espíritos me desafiem! Viverei em todos os seus mundos! Eu não tenho lar, nem deste lado do planeta nem do outro. Mas eu lhes digo uma coisa: qualquer espaço que cercar meu corpo passará a ser o meu lar. O meu lar é toda a criação, porque eu sou de Gaia! Eu não sou de nenhum totem, como os animais. Não sou um pedaço de alma, como os humanos. Não sou um fragmento de lendas, como os espíritos. Sou um Imortal! E tenho um lar! Porque eu sou meu lar!


EU!


SOU!


LAR!